sábado, 8 de agosto de 2009

"Indignação ou a Crucificação do Ateu."

No vigésimo nono romance de Philip Roth, "Indignação" (2008), Marcus Messner é um jovem de 19 anos, filho de um açougueiro judeu e verdadeiramente apaixonado pelos estudos que começa a realizar o sonho de ser o primeiro em sua família a obter um diploma de ensino superior, no início da década de Elvis Presley e James Dean, enquanto seu país, ainda sob os efeitos do trauma da grande hecatombe de 1939-1945, se envolve em uma nova deflagração na Coréia.

Marcus é filho único. Seu pai é um açougueiro kosher que trabalha com seu pai humildemente, embora sinta alguma repulsa pelo trabalho no açougue. Aos 19 anos, finalmente ingressa na Universidade de sua cidade, a Robert Treat de Newark, no estado de New Jersey. Seu interesse são as Humanidades, mas lá não permanecerá por muito tempo, devido à vigilância e às interferências excessivas de seu pai que, desde o dia em que começou seus estudos superiores, passou a temer por sua morte. O medo era em parte razoável: os Estados Unidos estavam enfrentando Guerra na Coréia e Marcus, devido à idade, poderia ser enviado coercitivamente como soldado ao campo de batalha, repetindo o drama de seus dois tios, mortos na Segunda Guerra Mundial. Mas havia também algo de irracional e premonitório no medo um tanto paranóico do pai de Mesner. Insatisfeito, pois, com o comportamento do pai, Mesner se transfere para uma Universidade do Meio-Oeste, a pequena, tradicional e puritana Winesburg, destinada a formar profissionais liberais.

Em Winesburg é destinado ao quarto de alojamento de um aspirante a ator, o boêmio Bertrand Flusser, homossexual e louco por promover escândalos naquele meio fortemente puritano. Marcus era um rapaz atipicamente disciplinado devido às sua origens e verdadeiramente apaixonado pelos estudos, de modo que a companhia do pequeno artista acima do bem e do mal que ouvia Beethoven em alto volume enquanto Marcus queria dormir começou a incomodá-lo. A convivência se tornou insuportável a partir do momento em que Marcus quebrou um disco de Flusser, mas enquanto incomodado preferiu se retirar. Foi viver no quarto de um rapaz sério, estudioso, taciturno, mas de caráter mesquinho chamado Elwyn Ayers Jr. Neste ínterim, tem dois encontros fundamentais, mas fatais em sua trajetória: com Olívia, uma jovem desencontrada, que tivera problemas com alcoolismo e tentara suicídio e Sony Cloter, o protótipo do rapaz saudável, bem relacionado, de família tradicional, vocacionado para a liderança e destinado a ser o continuador vigoroso de uma tradição, mas de caráter duvidoso.

Marcus se apaixona rapidamente por Olívia que já no primeiro encontro, no carro emprestado de Elwyn, o premia com uma inesperada felação. O rapaz, vivendo nos estertores de uma era de repressão sexual, fica espantado com a ousadia da moça e conta sua aventura a um aborrecido e desinteressado Elwyn que chama a garota de vagabunda. Marcus indigna-se com a ofensa à garota, diz um “vá se foder” ao rapaz e recebe em troca um soco no rosto. Mais uma vez, sem querer causar mais problemas, se retira e vai viver sozinho num quarto individual no pior alojamento da Universidade. Enquanto troca cartas apaixonadas com Olívia que lhe encanta apesar de ser seu completo oposto: desequilibrada, vinda de uma família rica, dada a vícios e já com um currículo considerável de experiências sexuais (Marcus morrerá virgem), Sonny Clother tenta convencê-lo obstinadamente a entrar em sua fraternidade.

As fraternidades seriam o equivalente aos Diretórios Acadêmicos, Centros Acadêmicos, Círculos Bíblicos Universitários e comunidades congêneres das Universidades brasileiras. Haviam fraternidades para todos os gostos, das religiosas às laicas, o que não havia eram alunos independentes e solitários como Mesner que se recusavam intransigentemente a integrar uma fraternidade. Mas a pressão pelo engajamento nas fraternidades era muito forte. O interesse único de Mesner naquela Universidade eram os estudos. Tudo o que queria fazer era dedicar todo seu tempo aos estudos preparatórios para o Curso de Direito e ao trabalho a que é obrigado para ajudar a custear seus estudos, mas de todos os lados é pressionado para integrar-se a uma fraternidade: pelos colegas, pelas fraternidades, pelo diretor de alunos da Universidade e por seu próprio pai.

Sony, o aparente bom rapaz da Universidade, surpreende Marcus duas vezes: a primeira ao revelar que Olívia também lhe presenteara com sexo oral e que os dois não eram os únicos beneficiados e a segunda ao revelar-lhe que não comparecia aos sermões religiosos obrigatórios, pagando alguém para ir em seu lugar e assinar seu nome fraudulentamente.

Os sermões são um dos motivos da indignação de Mesner. Ele era um ateu incauto numa Universidade confessional puritanta. Seu ateísmo era derivado de seus estudos: lera muito Bertrand Russel, célebre filósofo ateu e fora convencido pelos seus argumentos expostos no conhecido ensaio “Por que não sou um cristão.” Mesner também sente simpatias pelo comunismo e o vê como uma alternativa libertadora para aquele claustrofóbico meio puritano. Treda ilusão e ironia cruel: acabaria morto pelas mãos dos comunistas asiáticos cujos hinos entoava mentalmente durantes os sermões religiosos e as inquirições do diretor de alunos. O ateísmo de Mesner se torna um problema grave quando é chamado à sala do diretor de alunos para ser interrogado. O diretor estava preocupado com o comportamento arredio de Mesner. Incomodava-o que o aluno fosse tão solitário e independente, que não se entendesse bem com os colegas e que não aceitasse ser incorporado a uma fraternidade. A conversa constitui um dos pontos culminantes da narrativa. A sinceridade de Mesner é irrepreensível e ele não consegue deixar de manifestar sua indignação com os sermões obrigatórios. O ateísmo de Mesner é sincero, é um ateísmo de quem não consegue, com as ferramentas cognitivas de que dispõe, conceber a idéia de Deus e das religiões. Mesner não era ateu porque queria e não ficava satisfeito com que rebatessem seus argumentos ateus com um simples “Não. Você está errado. Bertande Russel está errado e pronto.” Mesner queria contra-argumentos e o diretor não podia dá-los. A discussão cresce até que Mesner vomita na sala do diretor: tivera um ataque de apendicite.

No hospital, recebe a visita da mãe e de Olívia. A mãe conta-lhe que o pai está à beira da loucura com medo da morte de Marcus, que mudara completamente seu comportamento se tornando um homem furioso no trânsito e insuportável em casa. Tem desejos homicidas em relação ao marido e pensa em divórcio. Ao mesmo tempo sente repulsa por Olívia, após perceber as cicatrizes em seu pulso, sinais óbvios de tentativa de suicídio. Teme que Marcus seja levado à perdição por ela. Ao final, chegam a um acordo: Marcus abandona Olívia e ela permanece com o marido. Em seguida, um torvelino de acontecimentos estranhos terminam no desastre de Mesner. Olívia desaparece e a Universidade é tomada por uma baderna boêmia de estudantes: o histórico “ataque às calcinhas.” Tudo começou com uma despretensiosa brincadeira de alunos que termina numa baderna generalizada no campus. Elwyn morre num acidente de carro em meio a tudo aquilo e Mesner cai no erro de seguir os conselhos do admirável Sony Cloter: aceita fraudar o comparecimento aos sermões, selando seu destino. A farsa fora descoberta, Mesner expuso da Universidade e abocanhado pelo Exército. Seu destino foi a Coréia onde teve a sua sepultura, confirmando as terríveis premonições de seu pai.

Mesner foi aniquilado pela própria comunidade. Não podiam suportar seu espírito arredio, sua independência e sua individualidade forte. Não queria integrar-se às fraternidades, só queria estudar, ser o primeiro formado de sua pobre família judia, mas isto despertou a indignação dos estudantes integrados às fraternidades e do próprio diretor da Universidade: “como podia não querer se integrar.” O diretor de sua Universidade encarnava o espírito puritano de controle sufocante da vida privada - o mesmo espírito que guiava John Winthrop na sua tentativa de erguimento de uma teocracia protestante na América - e Mesner, inexperiente, não soube jogar com a situação. Sua sinceridade o condenou. Uma condenação indireta e discreta à morte. No fundo, fora o ateísmo de Mesner a razão de sua condenação. Acreditava sinceramente nos argumentos contra-religiosos de Bertand Russel e ninguém na Universidade tinha competência para demonstrar-lhe os erros do filósofo de Cambridge. Tal como o motivo dominante da condenação de Mersault à morte foi o fato de não ter chorado no velório da própria mãe, o motivo da condenação de Mesner a servir na guerra foi o seu ateísmo, insuportável naquela Universidade puritana de Ohio. Aliás, o simples fato de ser judeu já incomodava o diretor. Os argumentos de Russel são facilmente rebatidos por um teólogo ou filósofo e o diretor, de fato, tinha razão em sua opinião negativa a respeito de Bertand Russel, mas não podia convencer um espírito investigativo e verdadeiramente interessado em conhecer acima de tudo como erro de Mesner com um simples “não! Isto está errado. Bertand Russel está errado! O ateísmo não se sustenta.” Mesner, repita-se, queria argumentos e ninguém ali naquele meio de medíocres e timoratos podia dá-los, pois ninguém tivera coragem suficiente para questionar as próprias crenças e a tradição em que estavam integrados. O diretor deu-lhe chances de se retratar, tal como Henrique VIII fizera com São Thomas Morus, mas o jovem se rejeitou a curvar-se, mandou o diretor “se foder” e assinou sua própria sentença de morte.

O livro ao fim nos conduz inevitavelmente ao seguinte pensamento: é incerto e talvez impossível dizer-se com plena certeza quem, numa situação histórica concreta, representará de novo o papel da vítima inocente, do Cristo, e quem fará as vezes de Caifás e companhia. Nem é preciso dizer que muitas vezes serão os próprios cristãos os promotores do sacrifício da vítima inocente. Neste último romance de Philip Roth, é o pobre judeu-ateusinho quem é pego para Cristo pelos professores e alunos cristãos de um meio puritano decadente. Mas ninguém passa por Caifás ou por Pilatos com consciência: simplesmente eles não sabem o que fazem.

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