quinta-feira, 4 de junho de 2009

NOVAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTETICISMO

Em sua obra “Gomorra” (2008) o escritor jurado de morte Roberto Saviano relata que os boss da máfia italiana só passaram a ser chamados de “padrinhos” após o sucesso do filme Godfather, de Francis Ford Copola. Saviano lembra ainda que Al Capone, na década de 1.930 imitava trejeitos de um personagem do filme Scarface de Howard Hawks, personagem este inspirado no próprio Al Capone. Walter Schiavone, boss da Camorra nos anos 1.990, fez construir para si uma mansão idêntica à do personagem de Al Pacino na refilmagem de Scarface, de Brian de Palma. Saviano relata ainda que após o sucesso do filme Pulp Fiction, os killers da Camorra passaram a atirar com a pistola tombada de lado, imitando os personagens da película, de modo que erravam freqüentemente o órgão vital da vítima, obrigando-se a novos disparos e causando sofrimento inútil. O filme de Quentin Tarantino também inspirou os jovens killers camorristas a repetirem antes de suas execuções a mesma passagem bíblica que o personagem de Samuel L. Jackson diz antes de uma execução:

“O caminho do homem de bem é cercado de todos os lados pelas iniqüidades do egoísmo e pela tirania dos homens maus. Abençoados os que, em nome da caridade e boa vontade, conduzem os fracos pelo vale das sombras, pois ele é o guardião de seu irmão e o salvador dos filhos perdidos. E eu vou atacar com vingança e fúria os que tentarem corromper e destruir meus irmãos. E quando minha vingança se abater sobre eles, saberão que eu sou o Senhor.” (Ezequiel, 25, 17).

A filmografia de Quentin Tarantino também serviu de inspiração para que as mulheres da máfia usassem roupas idênticas às de Umma Thurman em Kill Bill. Estes relatos me lembram de uma conversa minha com um policial civil de Belo Horizonte. A certa altura da tertúlia o meganha deixou escapar a pérola: “Em B.H., o policial ou se omite, ou se corrompe ou vai para a guerra. Eu decidi ir para a guerra.” Não pude conter o riso, pois o sujeito, sem perceber, repetia, ipsis literis, uma frase do filme Tropa de Elite. É notório como os policiais e agentes de seguranças de todo o país começaram a imitar frases, trejeitos e boinas do Capitão Nascimento naquele filme marcante.

Tudo isto mostra como a arte serve de modelo para a vida. Um clichê inevitável nos vêm à mente: uma imita a outra e vice-versa. De certo modo, ninguém escapa disto: os filmes, livros, músicas, personagens e autores que nos são caros formam o nosso próprio modo de ser no mundo. Daí a preocupação de muitos filósofos morais com a responsabilidade ética dos artistas. A arte induz modelos de comportamento. Grandes ícones da arte geram exércitos de imitadores. Os suicidas do rock’n'roll certamente inspiraram multidões de suicidas mundo a fora.

Há quem leve esta imitação muito a sério e viva como o personagem de uma obra de arte, cujos espectadores são seus convivas. Eis aí um dos sintomas do esteticismo segundo o filósofo Mário Vieira de Mello. Em sua obra “Desenvolvimento e Cultura” (1962), Vieira de Mello coloca o esteticismo como o traço marcante de nossa cultura, quando o Princípio Estético se torna independente do Princípio Ético, ou seja, quando a busca das satisfações estéticas deixa de estar subordinada aos princípios éticos. Não se trata de um fenômeno tipicamente brasileiro, pois a autonomização do Princípio Estético se iniciou no Renascimento europeu e se tornou predominante em toda a cultura européia. Mas toda a cultura brasileira, na visão de Vieira de Melo, seria esteticista, pois os dois grandes movimentos culturais que formaram nossa cultura, o Romantismo e o Modernismo eram eminentemente esteticistas. O esteticismo teria marcado de tal modo a nossa cultura que os brasileiros viveriam como que a representar papéis para a platéia de seus circunstantes. Para Vieira de Melo, o “homem cordial” de “Sérgio Buarque de Holanda não se explica pela bondade natural do brasileiro, mas pelo seu esteticismo peculiar que consiste em se ‘sentir num palco”.

Todo o livro “A Sagração da Primavera” (1987) de Modris Eksteins versa sobre o esteticismo. O autor identifica a Alemanha como “a nação modernista par excllence de nosso século” e a causadora das duas guerras mundiais. O que teria levado a Alemanha à guerra não eram motivos pragmáticos, mas uma certa estetização da guerra misturada a um espírito apocalíptico. Os próprios motivos alegados por seus dirigentes políticos para iniciar a guerra eram evasivos, vagos, poéticos por assim dizer. Lutava-se pela “cultura alemã”, por sua “superioridade moral”. A explicação do materialismo dialético para a Primeira Guerra Mundial mostra-se então perfeitamente furada. Os artistas aderiram à causa da guerra com um entusiasmo furioso. O próprio Hitler era um artista frustrado que, quando rebentou a deflagração, entrou em estado de êxtase. Lutou bravamente e tornou-se herói. O autor destaca todo o caráter teatral de Hitler e do nazismo. Segundo Eksteins, “ele [Hitler] se considerava a encarnação do tirano-artista que Nietzshce havia preconizado, o executor da “ditadura do gênio” pela qual Wagner suspirava. Ao tratar da política externa, vangloriava-se de ser ‘o maior ator de toda a Europa.”

O nazismo sob o enfoque de Eksteins é a intrusão do irresponsável espírito esteticista na política. O resultado é o desastre. Primeiro porque o esteticismo, nos termos de Vieira de Melo, é a autonomização do belo (ou do falso belo, do kitsch, que não é mais do que o belo dos homens de mal-gosto) em relação aos princípios éticos. Daí a abertura para o gozo estético da crueldade, da tirania e da destruição (lembro-me de um artista de uma banda de rock’n’roll comentando uma música do The Doors, algo mais ou menos assim: ela une as duas coisas mais amo na vida: beleza e destruição – é lindamente destrutiva). Em segundo lugar, porque o deus da política, assim como o deus dos negócios não é Dionísio, mas Apolo. A política responsável tem mais a ver com cálculo, método, com prudência, com racionalidade. Hitler nada tinha de metódico, de calculista e este foi um dos grandes motivos para a sua derrota: “Parecia [Hitler] congenitamente incapaz de uma rotina de trabalho metódica. Era famoso por faltar a compromissos, por tratar a papelada de modo desleixado e por trabalhar em horas inusitadas – ficando acordado até o amanhecer e dormindo até tarde -, o que deixava esgotado o seu círculo mais íntimo. Também se atribuía esse estilo, como o cabelo rebelde caído na testa, ao artista que havia nele.”

Antípoda da Alemanha era a Inglaterra, e de Hitler, Winston Churchill. De um lado, os esteticistas alemães, de outro os fleumáticos ingleses. De um lado, irresponsabilidade, vanguardismo, imprecisão. De outro, responsabilidade, tradicionalismo, cálculo. Freqüentemente, os esteticistas do século XX condensavam todo o seu ódio aos prudentes, calculistas e tradicionalistas na palavra-xingamento “burguês”. Burguês se tornou símbolo de tudo o que se opunha à sua sanha revolucionário-esteticista, e não apenas o que era típico de uma determinada classe social. Na perspectiva de Eksteins, as duas guerras podem ser definidas como guerras entre nações predominantemente “esteticistas” e nações predominantemente “burguesas”. Eksteins afirma que “o nosso século é um período no qual a vida e a arte se misturaram, na qual a existência se tornou estetizada.” No plano histórico a reação a isto veio das nações anglo-saxônicas, personificadas pelo sisudo e fleumático Winston Churchill.

O escritor que sentiu agudamente este conflito entre o espírito “esteticista” e o espírito “burguês” e talvez tenha vivido neste conflito foi Herman Hesse. O seu “Lobo da Estepe”, Harry Haller, define-se como um homem ambiguamente atraído pela vida boêmia e pela vida burguesa. É um notívago inteiramente dedicado à arte que bebe todos os dias, fuma muito e vive sozinho num catre bagunçado, mas que, quando passa defronte da casa burguesa e impecavelmente bem cuidada de seu senhorio sente-se atraído pela limpeza, pela sisudez , organização e paz daquele ambiente.

O conflito entre o espírito “esteticista” e o espírito “burguês” ainda é muito vivo em nossos tempos, convivendo com muitos outros “espíritos”, nesta era de fragmentação e coexistência de ethos os mais diversificados e contraditórios. Muitos de nós, nos dias atuais, ainda vivemos neste conflito, acendendo uma vela ao deu Apolo e outra ao deus Dionísio. Entregando-nos a divertimentos desvairados e depois voltando à normalidade dos nossos lares e escritórios. Cedendo à tentação da orgia como o personagem de Tom Cruise no último filme de Kubrik, mas depois voltando cheios de remorsos para a normalidade de nossas vidas “burguesas”, ao lado de nossas esposas, filhos e famílias normais. Depois cedemos novamente à tentação dionisíaca e o ciclo vicioso se repete indefinidamente.

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