terça-feira, 22 de janeiro de 2008

OTTO MARIA CARPEAUX E AS PROFECIAS.


No próximo dia 02 de fevereiro, sábado de carnaval, ninguém se lembrará de que, há exatos 30 anos, morria de ataque cardíaco, numa sexta-feira também de carnaval, o crítico e historiador da literatura Otto Maria Carpeaux. Diz-se que teria morrido ateu, materialista e só se preocupando com política, após uma progressiva decadência intelectual a que fora conduzido pelo país adotivo que tanto amava. Isto depois de ter sido um espiritualista e católico fervoroso. O mistério de sua conversão na maturidade e possível apostasia senil é bem evocado no ensaio “Introdução a um exame de consciência” de Olavo de Carvalho, que abre a coletânea de ensaios do grande escritor austro-brasileiro (Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux, vol I, 1998). Olavo procura as razões deste amesquinhamento intelectual e mesmo espiritual de Carpeaux e lança a culpa na própria mesquinharia intelectual e espiritual da elite de letrados brasileiros, fortemente materialista, esteticista e politiqueira.

O grande mérito da crítica de Carpeaux, ao meu ver, era o de perscrutar as significações metafísicas e religiosas das obras literárias, ou seja, analisá-las num plano muito mais elevado, muito além das análises psicológicas, sociológicas e estéticas, no curral das quais está confinada a quase totalidade do rebanho crítico nacional. Antônio Cândido, por exemplo, em sua obra “Literatura e Sociedade” diz que o bom autor deve ser equipado com três sensos: o estético, o psicológico e o sociológico. Ou seja, deve ser castrados dos sensos filosóficos e religiosos, os essenciais do ponto de vista de Carpeaux. É a prisão materialista. Agindo assim, estes críticos demonstram não compreender nada de autores essencialmente religiosos, como o era Guimarães Rosa, talvez o mais místico dos escritores brasileiros o qual, certa feita, sonhara com riqueza de detalhes um cenário para um romance, vindo a se deparar, para seu pasmo, muitos anos depois, com este mesmo cenário, exatamente como o sonhara (ver http://yurivieira.com/content/view/72/42/).

Abaixo, reproduzo um impressionante ensaio de Carpeux sobre profecias e acrescento um breve post scriptum.



DEFESA DOS PROFETAS

Otto Maria Carpeaux

É a nossa angústia que produz os profetas. Mas eles têm má reputação. Nunca, em parte alguma, teria havido profecias se não fosse uma procura urgente à qual, conforme as leis da economia, corresponde a oferta. Desconhecendo, porém estas leis, queixamo-nos dos honorários que se pagam aos profetas e que se recusam aos filósofos; e o amargo Lichtenberg diz: “Não se tem com que viver, dizendo a verdade; mas se tem bastante predizendo.” Isso quer dizer: se os filósofos chegassem ao poder, os profetas não teriam de que rir. “A profecia é a mais irracional forma de erro” – diz a severa positivista George Eliot, e a razão não desdenha mesmo o braço forte da polícia, quando se trata de exterminar a razão dos outros. È verdade que já não se atiram os profetas às cisternas, como os judeus tinham o hábito de fazer, porém os colocam sob o controle da polícia, de onde eles podem repetir as palavras do velho poeta russo Kirilov:

Falando-vos aqui, baixinho:
Profetizar é difícil nas garras de um gato.

Mas esta polícia obedece apenas às cóleras do público, e isto se entende. Existem boas profecias e más profecias. Quando as más profecias se realizam, todos esquecem os profetas que tinham tido razão. Deseja-se unicamente ouvir as boas profecias, chega-se mesmo a encomenda-las, e quando elas não se realizam, não se fica menos zangado. Como contentar a toda a gente? Lembrem-se ainda uma vez dos velhos judeus, dos quais Pascal diz que eram “
grands amateurs dês choses prédites ete grands ennemies de l’accomplissement”. É que desejavam muito saber o futuro, sem acreditar nele. “Nós o sabemos todos, nós todos” – dizia Disraeli – “sim, sim, nós o sabemos, mas ninguém o crê. Eis a palavra de ordem do dia.” E lembrem-se de certos homens de Estado, muito recentes que, numa época em que todo o mundo “o” sabia, começavam cada discurso por: “Eu recuso acreditar...” Mas os profetas tinham bastante razão.

Sim, os profetas têm razão, e não será difícil defende-los perante o tribunal de uma filosofia e de uma opinião morosas. Para resumir as acusações principais: primeiramente, as boas profecias não se realizam nunca; segundo, as más profecias se realizam sempre. Comecemos pelo primeiro ponto de acusação.

“As boas profecias não se realizam nunca.” Antes de tudo, é preciso dizer que a não-realização de uma profecia não é nunca uma objeção contra a profecia em geral; a única circunstância que justifica a oposição a uma profecia é que ela se tenha realizado.

O mais famoso dos profetas modernos é Miguel de Nostradamus, morto em 1566, médico e astrólogo de Carlos IV, rei da França. Desde 1555, conhece-se e estuda-se o seu livro de quartetos que prediz os acontecimentos do futuro. Os seus versos são tão obscuros que vêm sendo interpretados há quatro séculos, seguidamente. O que existe de mais extraordinário nessas profecias não é, absolutamente que elas não se realizem nunca, mas que se realizem sempre. Nostradamus prediz, por exemplo, e em palavras bastante claras, uma revolução e o aparecimento de um grande monarca, não sem acrescentar alguns pormenores bastante obscuros e que são a reserva dos intérpretes. Depois da morte de Nostradamus, esta profecia se realizou nada menos de sete vezes: a Revolução da Liga e Henrique IV, a revolução da Fronda e Luís XIV, a Grande Revolução e Napoleão, a Revolução de Julho e Luís Felipe, a Revolução de Fevereiro e Napoleão III; já são cinco; o zelo dos intérpretes não hesitou em acrescentar a Comuna e
Monsieur Thiers, o golpe de Estado de maio de 1879 e Gambetta. Esperamos que esta profecia se realize ainda muitas vezes; pois a França é imortal, e Nostradamus com ela.

Dito isto, está provado que é preciso defender o profeta contra os seus intérpretes, que são os verdadeiros acusados. Com efeito, Nostradamus, como verdadeiro profeta, teria tido muito que fazer, ocupando-se das crises de gabinete da Terceira República. É assustador que os intérpretes tenham desejado aplicar os seus quartetos a outros países ainda, ou até experimentado traduzi-los a outras línguas. Compreende-se que Nostradamus haja morrido misantropo, sem dúvida prevendo o epigrama de Voltaire contra Lê Franc, o tradutor de Jeremias:

Savez-vous pourquoi Jérémie
A tant pleuré pendant as vie?
C’est qu’em prophete il prévoyait
Qu’um jour Lê Franc lê traduirait.”

Então, que uma profecia se realizasse era uma razão de desconfiança. Mas que uma profecia não se realize, isto nada prova: ela poderá ainda realizar-se no futuro, o que não se pode provar, mas não se pode também negar. As profecias que não se realizam estão absolvidas.

Mas outras se realizam, e sobretudo as ruins: então, a gente fica zangada e diz: - o acaso! – O acaso, deus dos incrédulos, um deus do qual se sabe bem o que fez no passado, mas não se saberá jamais o que fará no futuro. Passado, Futuro são dimensões do Tempo, e parece que o Acaso é o grande subterfúgio daqueles que não desejam refletir sobre o Tempo; mas vale a pena.

O tempo é uma categoria do pensar, pela qual o nosso espírito ordena os acontecimentos em sucessão. Todos os acontecimentos nos aparecem em sucessão, obrigatoriamente, mas essa obrigação da nossa estrutura espiritual se estende mais ainda; é preciso pensar nos acontecimentos sucessivos encadeados por uma ordem, e nesta altura é inevitável a introdução de qualquer antropomorfismo quer imaginemos as sucessões organizadas unicamente pelo encadeamento de causa e efeito. São as duas formas de compreender o Tempo: a Providência Divina ou o determinismo “scientiste”. Não existe terceira via: “acaso” quer dizer que os acontecimentos, organizados em sucessão, não são organizados, o que é uma contradição em si e o subterfúgio da preguiça de pensar.

A Providência é a base da profecia religiosa. Admitir a Providência é admitir ao mesmo tempo que Deus permite, algumas vezes, aos seus eleitos, participar da previsão divina dos acontecimentos futuros. Estas profecias religiosas, das quais tenho medo de falar, são quase sempre desagradáveis – Deus bem sabe por quê – e, por isto, pouco amadas; Jeremias teria sabido fazer disso uma longa lamentação, e Isaías foi serrado, sim, serrado, por ordem do rei Manasses. Os reis não gostam dos profetas. Soloviev, o grande espírito religiosom que tinha previsto, nas suas Três Conversações (1900), o aparecimento vitorioso dos japoneses, predisse também o Imperador-Anticristo, “que não nega o cristianismo, mas que usurpa o nome do Cristo para suas campanhas e batalhas”; “que acredita na Providência, mas só gosta de si próprio e dos animais, e que é vegetariano”; “que burla todo o mundo por meio de um grosso livro, traduzido em todas as línguas”; “que se proclama Chefe e Presidente dos Estados Unidos da Europa” (Vladimir Solovievm Obras Completas, Petersburgo, s.d., vol. X, p. 81-221); e o único resultado é que este livro, velho de quarenta anos, foi mais tarde proibido na Alemanha. Mas eu gostaria de saber por que os nossos polemistas católicos se servem muito pouco do texto admirável: “Haverá uma época em que eles não sustentarão a sã doutrina, mas procurarão um Mestre à sua vontade, e abandonarão a verdade para se voltarem para as fábulas (S. Paulo, II Epist. Ad Timotheum, IV, 3); possivelmente porque o texto grego dia, para “fábulas”, os “mitos”, o que exclui as aplicações unilaterais.

O determinismo, por outro lado, favorece ainda os profetas. Com efeito, se todos os acontecimentos se desencadeiam de acordo com um causalismo rigoroso, é sempre possível um certo grau de providência, aumentado ainda hoje pelas doutrinas da física relativista, que não admite mais uma sincronia rigorosa: nos diversos espaço o tempo difere também, e o futuro, em alguns astros, é contemporâneo do nosso passado. Ninguém poderia ser mais feliz de posse deste raciocínio, do que Schopenhauer, o mais severo dos deterministas, que encheu o segundo volume dos Parerga e Paralipomena com as profecias e a sua possibilidade científica. Seja-me permitido acrescentar um exemplo surpreendente.

Nostradamus, no quarteto 18 do seu nono capítulo, escreveu, em 1555:

Lê lys Dauffin portera dasn Nanci
Jusques em Flandres electeur de l’Empire;
Neufve obturée au grand Montmorency,
Hors lieux prouvés deliver a clere peyne.”

As duas primeiras linhas referem-se a acontecimentos que se produziram, com efeito entre 1633 e 1635. As duas outras linhas dizem, em francês moderno: “
Il ya a une novelle prison pour lê grand Montmorency que será execute publiquement hors du lieu commun.” Ora, em 1632, Henrique, duque de Monrmorency, estava encarcerado naprisão, recentemente construída, de Tolosa; em 30 de outubro de 1632 ele foi executado, mas, graças à sua posição, não o executaram na Grande Praça, e sim no pátio da prisão. “Clere peyne” é a “clara pena”, a execução pública de acordo com os preceitos da lei. Porém é preciso também saber que a execução não foi feita pelo carrasco, mas por um soldado escolhido por sorte; e este soldado, dizem os cronistas, chamava-se Clerepeyne.

Seria o acaso? Mas a probabilidade de predizer ao acaso estes pormenores é de 1 em 30.000.000. O que não nos poupa ao aviso de Lessing: “Aquele que não perde a cabeça por causa de certas coisas não tem cabeça para perder.”

No entanto, existem profecias mais surpreendentes ainda, quando não se perde a cabeça, mas quando esta é conservada, se vale alguma coisa. A capacidade de um grande espírito de prever as relações complicadas e longínquas é quase ilimitada.

A 21 de fevereiro de 1827 – não existem caminhos de ferro nem vapores transatlânticos, e os Estados Unidos da América estão à margem do mundo – Goethe disse a Ekermann: “Haverá ainda o projeto de um canal do Panamá. É trabalho do futuro. Mas os resultados seriam incalculáveis. Ficarei surpreendido se os Estados Unidos não tomarem esta obra entre as mãos. Em trinta ou quarenta anos, esta jovem república terá povoado a Califórnia. Mas depois sra necessário evitar a longa viagem em volta do Cabo Horn. Para os Estados Unidos este canal será indispensável, e eles o terão. Desejava bastante vê-lo, mas não viverei mais... Enfim eu desejaria ver os ingleses na posse de um Canal de Suez...”

É de Goethe, dirão. Mas escutai a voz de um homem muito mais simples e quase desconhecido, de uma inteligência encantadora: Emile Banning, amigo íntimo do rei Leopoldo II dos belgas, ao qual ele aconselhava a colonização do Congo. Banning esceveu nas suas Reflexions morales et politiques, em 1893:

O século XX não terminará sem ter aberto um período de césares. O povo não irá busca-los nas dinastias reinantes, nas aristocracias de raça, nas classes médias, todas elas esgotadas, exauridas, tendo perdido seu direito de primogenitura por sua incapacidade e seu egoísmo. É de baixo que virão os futuros senhores. Eles fundarão sua legitimidade no testemunho daquilo que se passa diante dos olhos de todos; seu poder, na anarquia nos devora. Serão justiceiros temíveis.”

O mesmo Banning, nas suas Considérations politiques sur la défense de la Meuse, escritas em 1882, previu uma guerra entre a França e a Alemanha, com minúcias as mais precisas:

O exército alemão varrerá tudo que subsista das fortificações francesas na fronteira do Norte. Paris será ameaçada, se não tomada. Queira ou não queira, a Inglaterra terá de tomar partido na luta para salvar seu império da hegemonia germânica. Se faltar à Alemanha todo o pretexto para invadir a Bélgica, ela invocará imperiosas necessidades militares.”

Sem dúvida, são coisas desagradáveis essas profecias que se realizam. Como o prova o exemplo de Schopenhauer, existe uma ligação íntima entre a profecia e o pessimismo, e são os pessimistas que vencem melhor. Ninguém lhes agradece isto, Voltaire já lembrou: “Oui, Socrate a raison, mais il a tort d’avoir raixon si publiquement.” O orgulhoso húngaro Kossuth, no entanto contradiz: “O papel de Cassandra é ingrato; mas pensai bem, Cassandra tinha razão.”

Existe um caso único no qual o otimismo vence melhor ainda: quando ele prediz as coisas e as prepara ao mesmo tempo. Nisso vejo a única razão de acusar aqueles que são bons profetas mas falsos profetas. Não esqueceremos o artigo do Figaro de 13 de setembro de 1901, no qual o jornalista prevê um “Monck francês”, um general, instruído pela ciência política da Action Française, e que abalará a República enfraquecida. O artigo está assinado por Charles Maurras, e lembra as palavras do velho peta inglês Machael Green:

Prophecy which dreams a lie,
That fools believe, and knaves apply.”

Algumas vezes, é uma triste glória ter tido razão. Uma razão coletiva, aliás, acrescentaria o meu mestre Alain. “
Eh! Oui. Vous étiez milliers à l’avoir bien prévu; et c’est parce que vous l’avez pévu que c’est arrivé.”

Claro – e é o ponto culminante da defesa – certo poder de profecia está ao alcance de todos; é preciso apenas a gente adaptar-se às loucuras coletivas. O grande Swift deu-nos um exemplo surpreendente revoltando-se contra as ridículas profecias de um fazedor de calendários, Mr. Partridge. Swift publicava, por seu lado, um calendário, no qual se leu: “Em 31 de março de 1709 o sr. Partridge morrerá.” Toda Londres estava curiosa. Em 1 de abril de 1709 Patridge, com brilhante saúde, apareceu triunfalmente na rua, onde encontrou pregada uma proclamação de Swift: “Hoje, 1 de abril de 1709, vereis o sr. Partridge na rua. Mas não vos deixeis enganar. O sr. Partridge, que vereis, não é senão um cadáver mal informado.” E para a opinião pública o sr. Partridge estava morto desde aquela hora.

É isto. A opinião mata os falsos profetas. E se cumpríssemos o nosso dever, o pessimismo, até mesmo ele, acabaria, e poderíamos subscrever integralmente as palavras de Ludovic de Halévy: “
Je m’aperçois que j’ai passe ma vie à annoncer dês catastrophes, que se ne se sont jamais produites.”


Post Scriptum: Impressionantes as profecias de Goethe e Banning relatadas neste texto. E quem seriam os profetas do nosso tempo? As mais importantes profecias do século XX foram, sem dúvida, as de Fátima: o advento do comunismo (detalhe: as aparições ocorreram entre março e outubro de 1917, o período de gestação da revolução bolchevique), a segunda guerra mundial, a disseminação “dos pecados da Rússia pelo mundo”, a perseguição dos cristãos nos regimes comunistas e, por fim, a conversão da Rússia, que talvez signifique o fim da URSS. Essa conversão se daria após a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria. Tal consagração teria sido realizada pelo Papa João Paulo II na década de 1980. Mas o pior vem depois: no fim da segunda mensagem constam as seguintes palavras: “O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz”. Atentai: “algum tempo de paz!” Não é certo que vivemos um período de paz completa, que, aliás, nunca houve e nunca haverá (profecia minha) na História da humanidade. Mas não há comparação entre o período que se seguiu ao fim da Guerra Fria e o século XX. Não houve guerras e catástrofes proporcionais às do século mais sangrento da História, nem se vive a mesma tensão do período 1945-1991. Seria o nosso o tempo de paz a que se refere a mais acertada das profecias do século XX? Mas se é um período, e apenas um período, isto significaria que podemos esperar, para o futuro, um novo período de terríveis guerras e catástrofes tais como as que o século XX experimentou?

Um interessante estudo teológico do então cardeal Ratzinger sobre os acontecimentos de Fátima você encontra no endereço abaixo:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20000626_message-fatima_po.html

Nenhum comentário:

Seguidores

Arquivo do blog