terça-feira, 14 de outubro de 2008

O ESTRANHO WITTGENSTEIN 2.




Não sei nada sobre a filosofia de Wittgenstein (na verdade ninguém a entendeu completamente, diz Paul Johnson), mas é uma das personalidades filosóficas mais fascinantes e estranhas que já passaram pela face da Terra. Leitor voraz da pulp fiction produzida nos Estados Unidos, soldado raso metido em arriscadíssimas operações na Primeira Guerra Mundial, abandonou diversas vezes o cobiçado cargo de professor de Filosofia em Cambridge para se dedicar a humildes atividades braçais.

O pioneiro “Estranho Wittgenstein” foi um ensaio de Mendo Castro Henriques (1989) publicado pela primeira vez na internet pela lendária Home Page “O Indivíduo (http://www.oindividuo.com/convidado/mendo.htm).”

Advirto que o texto abaixo, às vezes, abusa da lisonja hagiológica kitsh, como no trecho em que diz: “Falava com autoridade (como Cristo, conforme muitas vezes se observou)”.

Heroísmo Cerebral: Wittgenstein

Paul Johnson – capítulo do livro “Os Heróis” (Ed. Campus, 2008, tradução de Marcos Santarrita.)

Não se espera que os filósofos sejam Heróicos. E raramente são. Mas dois se tornaram heróis por haverem recebido de seguidores, admiradores e opinião pública, em seu campo, esse status. O primeiro foi Sócrates, obrigado pelo Estado a suicidar-se por “corromper a juventude”, e depois transformado em herói por Platão. O segundo foi Ludwig Wittgenstein (1988-1951). Os dois foram egrégios não por acaso. Tinham muita coisa em comum. A maioria dos filósofos tenta construir idéias de um tipo mais ou menos ambicioso, no qual se encontrem quase todos os aspectos da atividade humana. Assim foram, por exemplo, o próprio Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Kant e Hegel; e, mais próximo de nosso tempo, Martin Heidegger. Mas Sócrates e Wittgenstein não aspiraram a construir sistemas. O objetivo deles era ensinar às pessoas a pensar, e a não pensar,e, tendo idéias, explicitá-las em obras precisas. Onde se vêem os construtores de sistemas como positivos, construtivos e criativos, eles dois se sentiam obrigados – não sempre, mas, com freqüência – a ser negativos, destrutivos e contracriativos. Essas tendências os tornavam perigosos, mas também, para os iniciados heróicos.

Uma vez pus os olhos em Wittgenstein, em maio de 1947, quando eu tinha 18 anos e estudava no Magdalen College, em Oxford. Nessa noite realizou-se na escola uma reunião da Sociedade Jowett, e Wittgenstein jantou na mesa dos professores, como convidado de nosso principal professor de filosofia, Gilbert Ryle, então editor de Mind. Eu jantava com dois de meus mentores, muito mais velhos, que haviam servido na guerra e completavam os estudos, Karl Leyser e John Cooper, depois famosos historiadores e professores de All Souls. Quando os catedráticos com um ou dois convidados entraram, Cooper exclamou: “Ora... sabe quem é aquele com Ryle?” “Sei”, disse Leyser. “É Wittgenstein!” Eu jamais ouvira o nome antes, mas era um sujeito promissor, e por isso disse: “Deus dos céu!” Era uma figura impressionante ainda por cima, não muito grande, mas bonitão e de olhos brilhantes, notáveis mesmo de longe. O que me impressionou, porém, foi a camisa de gola aberta. Era o seu traje habitual. Mas eu não sabia disso na época, e pareceu-me extraordinário que alguém jantasse a mesa dos professores sem gravata. O seu uso, e da toga, era obrigatório mesmo no salão onde eu e meus amigos nos sentávamos.

Mas a vida de Wittgenstein foi, do princípio ao fim, egrégia. Nasceu em Viena em 26 de abril de 1889, no mesmo ano que os dois ditadores, Salazar, de Portugal, e Hitler, da Alemanha, e dois artistas populares, Jean Cocteau e Charle Chaplin. Hitler era seis dias mais velho. Wittgenstein vinha de uma família judia, embora batizado. Seu pai, Karl, era um inventivo industrial de espantosos talentos, que se tornara o homem mais rico no negócio de mineração na bacia do Danúbio. Eram 18 filhos, todos talentosos, todos musicais, muito depressivos: dois dos irmãos de Wittgenstein se suicidaram, e ele muitas vezes se sentiu tentado a fazê-lo também. Era o caçula, e mimado. Foi educado em casa, no palácio da família em Viena, até os 14 anos. Uma memória de sua irmã Hermine descreve a precoce juventude do filósofo. Ele fazia, do nada, complexas máquinas. Aos 10 anos, construiu uma máquina de costura com pedaços de metal e madeira, uma Wittgenstein-Singer, que funcionou. Isso foi visto com ódio e medo pela costureira da família. Ele aprendeu latim e grego e jamais teve dificuldade para escrever e falar línguas que o interessavam, sobretudo inglês – era inteiramente capaz de dar aulas a catedráticos ingleses, como F. R. Leavis, sobre o significado de palavras inglesas. Aos 14 anos, mandaram-no para a Realschule, em Linz, onde durante um ano foi colega de Hitler, embora não (diz-se) na mesma classe. Foi ali que o futuro Füher aprendeu com o professor de história os conceitos básicos de patriotismo pangermânico, e tembém Wittgenstein, quando jovem, se sentiu atraído por autores manchados de ultranacionalismo, anti-semitismo e supremacia masculina. Os dois meninos, na época e depois, viram isso com olhos fortes e atentos, penetrantes, daqueles que se diz estarem “fitando.” Nenhum jamais falou do outro.

Na Realschule, Wittgenstein recebeu uma ótima educação, tecnicamente tendenciosa, e saiu de lá para a Technische Hochschule, em Berlim-Charlottenburgo, onde estudou engenharia. Em 1908, mudou-se para a Grã-Bretanha, e por três anos freqüentou a Universidade de Manchester, como estudante de pesquisa no departamento de engeharia. Ali, especializou-se em aeronáutia. Em todas as épocas da vida foi capaz de inventar máquinas práticas ou processos para superar problemas físicos e, quando surgiu a oportunidade, o fez rápido e com espantoso sucesso. Em Manchester (e depois) inventou, entre outras coisas, uma turbina de reação a jato, das usadas vinte anos depois por Sir Frank Whittle. Também criou uma parte móvel para helicóptero, que depois se tornou padrão. Na década de 1920, projetou e construiu para uma das irmãs uma casa em Viena, um pioneiro ensaio moderno do estilo modernista internacional, notável pelas peças de metal, a maior parte desenhada e feita por ele mesmo, pois ficara insatisfeito com as do mercado. Incluíam novas e engenhosas maçanetas de porta, ferrolhos de janelas e dobradiças. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando trabalhava como ordenança médico no Guy’s Hospital, em Londres, projetou uma admiradíssima máquina para tirar a pressão no pulso, e métodos bem-sucedidos de fazer produtos farmacêuticos e lidar com tecido humano em casos de disenteria.

Wittgenstein podia facilmente havar-se tornado um destacado projetista de aeronaves civis e militares, então, a fronteira distante da engenharia. Mas fazer máquinas de grande eficiência só atraía um lado dele, o lado criativo-construtivo de sua enigmática personalidade. E havia outro. A engenharia em Machester o fez ir fundo na matemática, e os estudos ganharam vida própria. Lavaram-no à obra de Gottlob Frege, que constituía uma espécie de ponte correspondendo-se e encontrando-se com Frege, que, por sua vez, o encaminhou a Bertrand Russel no Trinity College, em Cambridge. Em 1912, foi admitido em Cambridge, onde Russel ia concluir o magnífico Principia Mathematica (três volumes, 1910-1913). Russel tomou-o como pupilo e gemia de dor mental com as “maratonas” de intensa discussão. E escreveu: “Ele era talvez o mais perfeito exemplo que já conheci de gênio como por tradição se concebe, apaixonado, profundo, intenso e dominador.” Em um tempo surpreendentemente curto, inverteu-se os papéis de tutor e pupilo, e Russel se viu aprendendo com Wittgenstein, ou melhor, tentando, em desespero, resistir à tendência de o pupilo destruir sua obra.

Wittgenstein absorvia a filosofia sem esforço, embora jamais tenha lido muito, e então começou a desmontar os métodos filosóficos correntes. Todas as suas tendências destrutivas foram, de repente, despertadas, e ele sentia feroz prazer em dar-lhes rédeas soltas. Enfatizava, em particular, a incapacidade da linguagem para agüentar o peso que os filósofos importantes punham sobre ela. Quase todas as proposições se revelavam, examinadas de perto, falsas. Ele era um filósofo engenheiro. O sucesso da engenharia depende inteiramente do grau de precisão e tolerância necessário à tarefa, e da capacidade de realizá-la. Não se trata de questões de opinião, mas de verdades estatísticas, e atingi-la ou não logo se torna óbvio assim que a máquina, ou partes dela, é posta à prova. Wittgenstein, o homem da régua de cálculo, torno, compasso e torno mecânico, acostumado a atingir a perfeição física no projeto, e desempenho máximo, achava as palavras, frases, gramática, sintaxe – mas acima de tudo as palavras – escorregadias, instáveis, ambíguas e traiçoeiras. Em engenharia, alcança-se o objetivo na medida específica de tolerância exigida, e não se discute. Se a coisa é impossível isso também se torna inquestionavelmente óbvio. Há certeza positiva e negativa. Na filosofia, faziam-se tentativas de expressar com palavras, dizer coisas que só se podia mostrar. Logo se tornou um axioma de Wittgensteinm que perpassa toda a sua obra como um contínuo buraco de cupim, que não podemos falar de muitas coisas com verdade e exatidão, e, portanto, devemos calar-nos. Mas, para isso, havia uma coda: “Nada é tão difícil quanto não nos enganarmos.”

Ele forçou muito Russel, com freqüência mantendo-o acordado a noite toda em discussões. Muitos anos depois, Russel me disse: “Com ele, cheguei o máximo próximo que já cheguei de bater em um colega filósofo.” Esqueci os detalhes do incidente a que se referia: tratava-se de um sala de aula quase vazia e se havia ou não um hipopótamo lá dentro. Wittgenstein, para a fúria de Russel, insistia em olhar debaixo das cadeiras para ver. Também discutiu com outro grande filósofo de Cambridge. G.E. Moore, expoente do que então se chamava filosofia do “bom senso”, um tipo peculiarmente antipático na insistência nas limitações e inadequação das palavras. Wittgenstein também cansou Moore, a ponto de a senhora Moore, preocupada com a saúde do marido, proibir discussões que durassem mais de 30 minutos.

Nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, portanto, Wittgenstein estabeleceu-se como um filósofo de gênio implacável e, muitas vezes, destrutivo. De vez em quando achava que a filosofia era, ou podia ser, inútil, e que a maioria das pessoas que a tentavam se ocupariam melhor fazendo alguma forma de trabalho braçal. Ocasionalmente, essas idéias assumiam a forma de conselho peremptório e gratuito: “Russel”, disse, “desista da filosofia”. “Moore, desista da lógica.” Às vezes achava que ia desistir ele próprio. Então, em outubro de 1913, foi ao outro extremo e instalou-se em uma remota cabana em Skjolden, em Sogn, Noruega, para fugir das distrações e falsos valores de Cambridge, e concentrar-se ferozmente na lógica matemática.

A chegada da guerra na Europa em agosto de 1914 interrompeu esse exílio auto-imposto e deu algum tipo de propósito à sua vida. Ele entrou no Exército austríaco como soldado raso, recusando todas as oportunidades abertas a um homem de sua riqueza e ligações para obter uma patente imediata. Isso foi típico. Além do mais, uma vez no Exército, ele rejeitou todo serviço longe da linha de frente. Combateu, sobretudo, na frente oriental contra os russos, expondo-se indiferentemente ao fogo e ao perigo e realizando atos de bravura que causaram admiração. Em particular, ofereceu-se, repetidas vezes, como voluntário para deveres como “observador, avançado.” Isso significava rastejar para a terra de ninguém com binóculos e um telefone de campanha e comunicar ao quartel-general da brigada os resultados do fogo de artilharia. Dizia-se que era o mais perigoso dos deveres militares, e que viviam pouco os que o cumpriam. Pode-se pensar nos motivos de Wittgenstein para assim arriscar a vida, em vista da taxa de suicídios na família. Mas não há indícios de que tentasse deliberadamente fazer-se matar. O que a guerra mostrou, ao contrário, foi sua tendência a assumir uma posição extrema em qualquer questão que se impusesse à sua atenção. Seria fácil vê-lo tornando-se um militante pacifista. Russel escolheu esse caminho, à medida que a guerra avançava, e no devido tempo foi para a cadeia por suposta incitação às tropas britânicas a que desobedecesse às ordens. Wittgenstein foi para o extremo oposto, e sua conspícua coragem acabou por levá-lo a ganhar uma patente, fato raro no velho exército imperial da Áustria-Humgria. Com o colapso russo, transferiram-no para a frente italiana e caiu prisioneiro de guerra quando a Áustria se rendeu, em novembro de 1918, e seu exército se desintegrou. Os italianos o mantiveram preso até agosto de 1919. Deve-se dizer, no entanto, que, embora a princípio escolhesse o serviço nas fileiras e a intimidade terra a terra da trincheira na linha de frente, Wittgenstein não gostava da companhia dos camaradas soldados. Achava-os bestiais e bárbaros, egoístas, repugnantes e horríveis. Era, por natureza e hábito, muito higiênico, e a sujeira que agüentava lhe parecia quase insuportável. Em Cambridge, aprendera a desprezar os intelectuais. Nas trincheiras, descobriu que o “homem comum” era igualmente, senão mais, repelente.

Mas foi, durante esses anos de guerra – o período em que o colega de escola Hitler, igualmente conspícuo pela bravura e desprezo ao perigo, formulou sua filosofia política – que Wittgenstein acrescentou outra dimensão moral a seu pensamento, e criou uma poderosa, mas oculta, filosofia moral. Diz-se que isso resultou da leitura de Tolstoi, mas duvido. Não há prova de que Tolstoi, um pensador desconchavado e impreciso, daqueles que ele desprezava, deixasse algum vestígio em suas palavras escritas ou faladas. A leitura de Wittgenstein jamais era extensa, mas sempre peculiarmente eclética. Ele era exigente, depois obsessivo. O único Dickson de que gosta, por exemplo, eram pedaços de O Viajante Não Comercial e alguns trechos de Cântico de Natal, que lera repetidas vezes. Gostava de ler os Contos de Fada dos Irmãos Grimm, sobretudo a história “Rumpelstiltskim”, cujo poder dependia apenas de ninguém saber o seu nome. Achava essa uma imagem transcendental, que exerceu grande poder sobre o seu pensamento. Retornava sempre a ela. Parece ter-se interessado pouco pela literatura como tal. Tinha cultura musical. A família dava concertos regulares no palácio, freqüentado por todos os principais músicos da Viena do pré-guerra. Um dos irmãos dele tornou-se pianista profissional e, quando perdeu o uso da mão direita, Maurice Ravel escreveu para ele o Concerto para Mão Esquerda. Wittgenstein não era um artista de palco, mas um soberbo assobiador, sobretudo da forma sonata, um talento que pode ter aprendido com Gustav Mahler, amigo de seus pais, quando diretor da ópera de Viena. Mahler assobiava duetos e trios com espantoso virtuosismo. O assobio clássico parece ter sido um talento muito procurado na Viena do pré-guerra. Hitler era um soberbo assobiador, sobretudo de sua música favorita, A Viúva Alegre de Lehár. Wittgenstein gostava de assobiar toda uma sinfonia, de Schubert ou Brahms, com descantos e arpejos, e digressões na madeira. Mas, em leitura, preferia a excitação bruta. Entre as guerras, contraiu uma intensa paixão por histórias de gângsteres americanos em revistas baratas como The Black Mask. Era o gênero onde Dashiel Hammer e Raymond Chandler aprenderam o ofício. Mas Wittgenstein não mostrava preferência pelas histórias acima da média de Sam Spade e Philip Marlowe. Gostava do material repetitivo, rotineiro e quanto mais formulaico, melhor: precisava de quantidade e confiabilidade. Durante a Segunda Guerra Mundial, era-lhe importante receber de amigos dos Estados Unidos pacotes imensos e periódicos de revistas pulp. O mesmo se dava com a comida. Ninguém jamais se interessou menos por gastronomia. Mas se achasse um prato ou produto a seu gosto, seguia comendo-o durante dias, com indiferente concentração, até surgir uma nova fantasia. Todos os seus hábitos tendiam à obsessão.

Daí não surpreender que a religião desempenhasse parte pungente em sua vida, capaz de explodir sem aviso em fases obsessivas e depois baixar, mas sempre perto da superfície. Sempre houve nele alguma coisa de monge, praticando a pobreza, o celibato – mas nunca a obediência – e um pouco de frade pregador também, impondo a teologia dogmática ex cátedra. Wittgenstein jamais foi mais humilde do que quando se sentava descalço na cadeira de bispo. Não está claro se algum dia acreditou em Deus, por que Deus, ou melhor, a crença em Deus, suscitava definições de proposições de intratável complexidade. Mas, certa vez, disse: “Não se deseja o meu tipo de pensamento na época atual. Eu tenho de nadar com muito esforço contra a maré... Não sou um homem religioso, mas não posso deixar de ver todo problema do ponto de vista religioso.” Quando foi para a cabana na Noruega, em 1931, passou o tempo todo, ou pelo menos assim disse ao voltar, rezando – e não filosofou. Que tipo de prece? E com que intenção? Não sabemos. É possível escrever todo um livro sobre a presença da religião em sua vida, e a intrusão da religião em sua obra; na verdade, já se fez isso. Mas, no fim de tudo, a relação dele com Deus permanece obscura, se é que chegou a existir. Sem duvidas frisou duas coisas. Primeiro, a idéia de Deus podia fazer alguém sentir-se o que chamava “absolutamente segura”; o “estado mental” em que se pode dizer: “Estou seguro, nada pode me machucar, aconteça o que acontecer.” Segundo, gostava da experiência resumida na frase: “Maravilha-me a existência do mundo.” Aguardava-lhe a idéia de “ver o mundo como um milagre”, o milagre básico de Deus.

Contudo, Wittgenstein lera Confissões, de Santo Agostinho, ou pelo menos as olhara. Citou-as, mais de uma vez. Achava que o importante não era tanto a crença, mas a conduta. Dizia que a essência do cristianismo (pois tivera uma educação católica) não era o dogma, nem mesmo a prece, mas que “nossa maneira de vida é diferente.” E acrescentava: “Só quando se tenta ser útil aos outros se acaba encontrando o caminho para Deus. Valorizava a amizade e podia ser um amigo apaixonado, mas também difícil. Falava pouco de sua sexualidade – não muita gente, naquele tempo, fazia disso assunto de conversa. Certa vez acertou sair de férias com uma mulher, de modo a fazê-la pensar que desejava dormir com ele. A senhora se dispôs a aceitá-lo em sua cama, mas ele nem tentou. A amizade com os homens era mais íntima; em um ou dois casos obsessiva, como era de se esperar. Gostava da expressão antiquada “ficar de tocaia” ao falar de tais pessoas. Mas também usava palavras como “pervertido”, “imundo”, “nojento”. Se teve intercurso sexual com homem ou homens em uma ou duas ocasiões, arrependeu-se. Um filósofo acadêmico me disse: “Essa brutalidade (emocional, não-física) refletia culpa.”

Uma das maneiras como podia, porém, beneficiar-se dos irmãos humanos de forma cristã era ensinando-lhes a pensar, com clareza e verdade, no mundo real. Isso significava pôr as próprias idéias em ordem. Durante a guerra fez isso, de modo que, no fim do conflito, concluíra um trabalho chamado Logisch-Philosophishce Abhandlung, em geral conhecido como Tractus Lógico-Philosophicus. Teve enorme dificuldade para escrevê-lo, e depois publicá-lo. Poderia ter pago a edição, mas recusou-se, e a obra acabou publicada nos Annalen der Naturphilosophie (1921). Em 1922 saiu uma tradução inglesa. Curto, sentencioso, em partes numeradas, é a mais memorável obra filosófica publicada em todo o século XX, em qualquer parte. Não é um livro, está mais próximo de uma coletânea de apotegmas relacionados por tema, embora este seja muitas vezes subterrâneo, ou mesmo de todo ausente. Ninguém jamais o entendeu, digam o que disserem. Mesmo Wittgenstein, depois de reuni-lo a partir de pedaços de idéias suas em um longo período, provavelmente jamais o aprovou pro inteiro. De qualquer forma, foi aos poucos passando a desacreditar em grande parte do livro, senão todo, e sua única outra grande obra, Investigações Filosóficas, publicação póstuma, é bem diferente.

Deve-se entender uma coisa importante a respeito dele. Era inteiramente incapaz de escrever um livro de filosofia, como Karl Marx o era de escrever um de economia ou política. A explicação era a mesma. Nem ele nem Marx tinham qualquer tipo de educação judaica. Mas os dois descendiam de antepassados rabínicos, e essa grande herança genética significava que tendiam, sem o saber, a adotar o procedimento central do saber rabínico, de seguir os comentários da obra interpretativa dos antecessores. Nenhum podia escrever a partir do nada, ab initio. Assim como Das Kapital é uma enorme série de reações (ou comentários) a escritores econômicos anteriores, também o Tractus é um processo espasmódico de comentário sobre os métodos lógicos que o autor extraiu de Frege, e que se viu sendo ensinado em Cambridge.

Ainda assim, é muitíssimo original, perceptivo, estimulante e, acima de tudo, excitante. Wittgenstein tinha o talento de Sócrates para agitar os jovens sobre o caminho que ensinavam. Poucos que lêem o Tractus apreendem tudo. A totalidade de qualquer inteligência pega pedaços, e a vasta maioria uma emoção. Isso apesar de, ou devido a, uma excêntrica tradução, de C. K. Ogden e F. P. Ramsey, que produziu imagens como “O mundo é tudo de se trata”, frase de abertura traduzida de “Die welt ist alles, was der Fall ist”; a “A Lógica deve cuidar de si mesma”, deriva de “Die Logik muss fur sich selben sorgen”. Wittgenstein diz: “O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas, e decompõem-se em fatos independentes que o dividem.” E acrescenta: “Coisas como cadeiras ou aquela árvore não são independentes de seu ambiente e, portanto, não são fatos.” E depois: “Os fatos estão no espaço lógico e independem uns dos outros, e só podem ser declarados ou afirmados.” Isso era típico de como ele induzia os leitores a pensar com cuidado sobre o modo de formularem proposições. O resultado era levar os não-filósofos a quererem fazer filosofia e os filósofos a fazê-la de forma diferente. Uma das atrações da obra é que tem apenas 75 páginas e ninguém acredita, a princípio, que não possa dominá-la. É a luta bem-sucedida para dominar partes dela, combinada com a malsucedida tentativa de aprender o todo, que constitui o desafio-prazer que leva as pessoas a marcharem sobre a obra repetidas vezes (como em Proust).

Após publicar o tratado, Wittgenstein seguiu seu próprio conselho e abandonou a filosofia, pelo menos em teoria. Substituiu-a pelo ensino de crianças em uma remota aldeia da alta Áustria. Isso se revelou muitíssimo insatisfatório. Em certo nível, ele era um professor brilhante, que abria frutífero diálogo de mentes, mas na qustão fixar fatos em cabeças pequenas, faltava-lhe paciência. Essa impaciência podia tomar a forma de violência, e ele acabou se metendo em séria encrenca por bater em uma menina pequena. Como o castigo corporal era universal nas escolas austríacas, o comportamento dele deve ter sido exagerado. É provável que as pessoas do lugar já o temessem, julgando suas excentricidades como prova de maldade. De qualquer modo, a experiência terminou em abjeto e humilhante fracasso. Foi então que ele construiu a casa da irmã, e isso lhe deu certa satisfação, embora ninguém fora da família jamais pensasse em encontra-lo como arquiteto. A essa altura, ficara sem um vintém, por dar sua parte da família a outros membros dela. Por que não a deu a instituições beneficentes? Porque a escolha destas, como a crença em Deus, haveria suscitado insuperáveis problemas proposicionais. Ele tomou a saída rápida e fácil.

Naturalmente, o sacrifício da grande renda privada significava que teria de ganhar a vida. Em 1929, voltou a Cambridge para retomar a filosofia. Russel e Moore arranjaram-lhe a concessão de um diploma de doutor em filosofia com base no Tractus, tomado como tese. No ano seguinte, fizeram com que o elegessem professor do Trinity College, e ele começou a das aulas e conferências. Passou toda a década de 1930 em Cambridge, a não ser por um ano na cabana na Noruega quando trabalhou em um projeto que acabou por tornar-se o póstomo Investigações Filosóficas. Também, em 1933-1934, ditou o material que depois se tornaria o Livro Azul, e em 1934, o Livro Marrom. Foi professor de filosofia do corpo docente, em fase de teste, embora não tivesse posto formal (um arranjo muito irregular) até 1939, quando Moore renunciou à cátedra de filosofia e, com Russel, conseguiu de importância atual. Russel e Moore eram figuras poderosas em Cambridge, e repetidas vezes usaram esse poder para dar um empurrão em Wittgenstein. Isso se justificava inteiramente, pois ele era não apenas um gênio (jamais houve qualquer discussão quanto a isso), mas um tutor/professor com surpreendente impacto sobre os alunos, e eletrizava toda a faculdade de filosofia. Vale a pena notar, no entanto, que sob as atuais e altamente complexas regras burocráticas das universidades, impostas com tanta rigidez, nada disso teria acontecido. Wittgenstein não teria encontrado emprego universitário. Cambridge, na verdade, a vida acadêmica, o teria perdido.

Graças à produção de catedrático-chave, Wittgenstein ensinou em Cambridge durante oito anos na década de 1930. Quando veio a guerra, ele trabalhou primeiro no Guy’s Hospital, em Londres, depois na pesquisa médica, em Newcastle, onde prestou serviços extremamante valiosos e muito apreciados. Depois voltou à cátedra de filosofia, mas falava repetidas vezes em desistir de tudo. Suas últimas aulas foram no período da Páscoa em 1947, e ele renunciou ao magistério no outono. O ensino, pois, cobriu dez anos, e teve sucesso sensacional por qualquer padrão, mas em particular pelos três critérios mais comumente aplicados: primeiro, o impacto sobre os alunos; segundo, a influência sobre outros professores; terceiro, o valor duradouro do material ensinado. Foi um dos professores mais originais que já existiram, tanto na forma quanto no conteúdo. São seis os motivos pelos quais seu ensino teve sucesso tão enfático. Primeiro, foi cercado de segredo, lançando, assim, sobre a atividade, um fulgor gnóstico. Desde o começo, o número de pessoas de Cambridge, alunos e catedráticos, nem todos filósofos, de modo algum, que desejavam assistir às suas sessões (na falta de melhor palavra), era maior do que se poderia acomodar com facilidade, e muito maior do que ele próprio desejava, pois achava que relativamente pouco iriam beneficiar-se. Daí as “aulas” não serem anunciadas da forma habitual no Cambridge University Recorder. Em vez disso, alguns catedráticos eram informados dos horários e lugares, o que leva a uma segunda questão: seletividade. Os que assistiam sabiam que eram uma elite, um grupo escolhido, considerado digno de receber o conhecimento especial proporcionado por Wittgenstein. Deitava-se, assim, a base do discupulado – pode-se mesmo dizer apostolado – que se tornou tal característica do ensino. Terceiro, as aulas eram, em essência, espontâneas. Embora ditasse o Livro Azul, em geral, falava não com base em notas, mas por impulso. Parecia estar pensado de pé, criando à medida que a aula prosseguia, formulando todo um novo sistema filosófico, ou melhor, uma forma de pensar, por um processo impulsivo, intuitivo e muito emocional de celebra;ao não-ensaiada. O que tornava isso mais memorável era que ele muitas vezes proibia estritamente a audiência de tomar notas.

Se vocês anotarem essas observações espontâneas, um dia alguém pode publicá-las como minhas opiniões pensadas. Não quero que se faça isso. Pois estou falando agora livremente, à medida que me ocorrem as idéias. Mas isso exigirá muito mais pensamento e melhor expressão.

Ninguém foi mais profuso ao comunicar as idéias nem teve mais senso de propriedade ao proibir a não-autorizada disseminação delas. Sempre que outras pessoas tentavam apresentá-las de forma impressa, ele tinha um ataque de raiva. Os que não reconheciam a dívida, ele os acusava de plágio. Mesmo assim, a proibição às notas não funcionava. As pessoas anotavam às escondidas, ou de memória depois, no mesmo dia. Foi assim, por exemplo, que Aulas e Conversas em Psicologia e Crença Religiosa veio a ser publicado.

O quarto motivo de sucesso era que as aulas eram interativas. Não apenas se convidava, mas forçava a platéia a participar (razão porque se tinha de limitar o número). Criava-se o diálogo. Ele dava aos alunos a impressão de que não apenas criava diante dos olhos deles, mas envolvia-os no processo criativo. Era estonteante, inesquecível e também os catedráticos que assistiam ficavam fascinados. Quinto, as aulas eram muito exigentes. As sessões não levavam a costumeira uma hora, mas duas, e como tudo mais ligado a ele, acabavam por ser demasiado exaustivas. As pessoas saíam “drenadas” – mas também eufóricas. Wittgenstein ainda insistia em que todos se “matriculassem” para todo o curso de um mês e meio a dois meses, e mantivessem o acordo. Julgava isso essencial para o processo contínuo de criatividade e diálogo recíprocos, a essência do ensinamento. Daí, e sexto motivo, os que sobreviveram a todo um período de Wittgenstein se sentirem como veteranos de guerra, experientes, enrijecidos pela batalha, honradas, condecorados – diferentes. Haviam sido iniciados na filosofia na fronteira mesma da descoberta. Tornavam-se membros de um clube crescente, e esse clube ainda existe, de forma meio fantasma, até hoje. E o Presidente Perpétuo é um herói.

Avaliar o que aprenderam – ou lhes ensinaram – é muito mais difícil que descrever o clube. O Tractus brotou da experiência de Wittgenstein como engenheiro, segundo vimos. Essa linha de investigação ficou submersa na Primeira Guerra Mundial, e é surpreendente, quando se a olha do fim da carreira dele, que o Tractus até mesmo haja atingido algum tipo de forma escrito. Seus ensinamentos nas décadas de 1930 e 1940 resultaram de um pano de fundo bem diferente, a experiência com as crianças pequenas. O fato de não haver metido “fatos” na cabeça de meninos e meninas de 10 anos nessa tentativa levou-o a julgar que uma forma melhor de faze-lo seria brincar com elas, e usar imagens. Isso pode não ter funcionado com as crianças, mas a técnica do “jogo de linguagem” que criou serviu bem com os alunos de idade universitária. Desconfio de que ele teve a idéia para os jogos de linguagem que criou nas leituras de fragmentos de Confissões, de Santo Agostinho. O santo gostava de fazer perguntas como: “Aonde vai o presente quanto se torna passado?” etc. A Primeira Parte do Livro Marrom contém 72 exercícios do jogo de linguagem, do tipo “Imagine um povo cuja linguagem não lhe permite dizer frases como `O livro está na gaveta`, ou `A água pode ser tirada do copo.” Outro exercício é “Se um animal pudesse ler, como você lhe ensinaria a tornar-se uma máquina de ler?” A essência de um jogo de linguagem é que esse exercício filosófico em particular vem da corrente geral de pensamento e avança segundo suas próprias regras específicas, que funcionam de forma tão arbitrária quanto as regras de qualquer outro jogo, por acordo entre os jogadores. O Oxford English Dictionary define-o como “uma atividade da fala ou sistema limitado de comunicação, completo em si, que pode ou não fazer parte de nosso uso da linguagem existente.” Ele próprio o definia como “formas de usar sinais mais simples que aqueles nos quais usamos os sinais de nossa complicadíssima linguagem do dia-a-dia. Esses jogos são as formas de linguagem com as quais as crianças começam a usar as palavras.” Com essas brincadeiras, Wittgenstein estabeleceu um controle mais rígido dos fatos didáticos e dos alunos, porque podia determinar as regras de formas impossíveis quando usava a matemática ou a lógica. Esses jogos inevitavelmente reforçavam também o elemento gnóstico.

Entre as guerras, o Tractus foi largamente lido nos dois lados do Atlântico, assim como em Viena, onde Wittgenstein era um herói mágico. Por volta do fim da década de 1930, ele já se tornava famoso nos meios acadêmicos ingleses, mesmo em Oxford, que por tradição se mantinha distante das inovações vindas de Cambridge, sobretudo em filosofia. O desaparecimento de Wittgenstein durante a guerra aguçou os apetites e, no fim de 1945, sua volta à sala de aula ou presença em qualquer reunião assumiu a natureza de um epitalâmio. Uma mitologia de Wittgenstein começou a aderir às historinhas rotineiras sobre o excêntrico e inexplicável comportamento dele. Quatro características chamavam particular atenção. A primeira de todas era a austeridade. Ele não usava gravata e as roupas eram as mais simples, compradas em lojas de operários. Tinha cadeiras simples de lona, ou de convés, em seus aposentos. Tornou-se aguda a antipatia por qualquer tipo de formalidade. A segunda é que, contudo, ele continuou magistral. Falava com autoridade (como Cristo, conforme muitas vezes se observou). Repreendia com força acachapante. As amizades, embora muitas vezes bastante vibrantes, organismos vivos, viviam cobertas de ferimentos de brigas que, com freqüência, terminavam em morte. Ele convidava as pessoas a entrar em sua vida e depois as expulsava. Terceira, Wittgenstein passou a encarar cada vez mais a vida acadêmica como debilitante; “não tinha oxigênio”, como dizia. Mais cedo ou mais tarde aconselhava quase todo mundo, catedráticos e alunos da mesma forma, a desistirem dela. Quarta, criou antipatia pela ciência, ou melhor pelo cientificismo. Como disse no livro Azul, há grandes danos quando os filósofos “vêem o método da ciência diante dos olhos e sente a irresistível tentação de fazer e responder perguntas como faz a ciência.” Achava o método científico particularmente inadequado em estética e religião. Dizia coisas rudes sobre obras de ciência popular, como O Universo Misterioso, de James Jean, que caracterizava como “idolatria”, sendo o ídolo “a ciência e o cientista”. O que ele diria do atual clima de cientificismo na universidade, promovido por catedráticos da televisão como Richard Dawkins, causaria tonteira. Nesse aspecto, como em outros, defendia a antiga alta cultura do gosto e discernimento, fundamental para a civilização européia durante mil anos, e agora ameaça por um terrível novo tipo de materialismo.

Em termos sociais, fez uma trilha nervosa entre o círculo de Bloomsbury, no qual Russel e Moore o introduziram, e marginais como F. R. Leavis, que odiava Bloomsbury e tudo que representava. Keynes tentou apadrinha-lo com benevolência e ouviu: “Keynes, desista da economia.” (Talvez também tenha sido verdade que tenha dito a Virgínia Woolf: “Virgínia, desista de escrever romances!”). Leavis foi um daqueles com quem fez amizade inquieta, pontilhada por mal-entendidos. Os dois davam longas caminhadas juntos e, às vezes, remavam em uma canoa no rio. Depois que Wittgenstein morreu, Leavis escreveu uma história da amizade entre eles. É escrita na desajeitada prosa dele, em alguns lugares opaca a ponto de se tornar incompreensível, mas dá, à sua maneira, uma vívida impressão do homem: de grande autoridade e, às vezes, autoritário, mas também impulsivo, generoso, cheio de desculpas; e sempre fascinante. Inevitavelmentem disse: “Leavis, desista da crítica literária.”

O status heróico cada vez maior de Wittgenstein entre muitos seguidores e admiradores foi realçado pelo anedotário mitológico que se formou à sua volta. Um incidente famoso, ou notório, ocorreu na sexta-feira, 25 de outubro de 1946, em uma reunião do Clube de Ciência Moral de Cambridge, no King’s College. O orador era o dr. Karl Popper, autor do que se tornava um texto libertário chave, A Sociedade Aberta e seus Inimigos. É difícil pensar em duas visões mais diferentes da filosofia que as de Wittgenstein e Popper. Não que o primeiro fosse antilibertário; longe disso. Mas não acreditava que a filosofia tivesse alguma coisa a ver com tais coisas ou seus antônimos. Não se tratava do que pensar, mas como pensar. Os dois trocaram palavras acaloradas, e Wittgenstein desapareceu na noite. Mas essa é a versão de Popper do que ocorreu. Há várias outras, inconciliáveis em pontos importantes. Escreveu-se todo um livro sobre esses dez minutos, e os que o leram podem decidir-se sobre o significado filosófico – se algum há – dos acontecimentos. Popper era tão difícil quanto Wittgenstein. Um quarto de século depois, após receber uma carta entusiástica de Popper sobre um de meus livros, Tempos Modernos, eu o convidei à minha casa em Iver (ele então morava a poucos quilômetros de distancia). Ele disse: “Pode me dar uma garantia absoluta de que ninguém fumou em sua sala de jantar durante pelo menso um mês e meio?” “Não, receio que não.” “Então eu não posso ir.”

Houve incidente semelhante em Oxford, em maio de 1947, na noite já descrita, quando tive meu primeiro vislumbre de Wittgenstein. A reunião, na qual ele respondeu a um trabalho sobre “Cogito ergo sum”, de Descartes, realizou-se em uma sala de aula pouco iluminada. Mary Warnock anotou em seu diário: “Praticamente todos os filósofos que eu já vi estavam lá.” Wittgenstein, em gesto típico, recusou-se a falar sobre o tema oficialmente em discussão, falando, em vez disso, de coisas de seu próprio interesse. A ortodoxia de Oxford, na pessoa do velho professor Joseph Pritchard, não parava de interrompe-lo, e foi muito rude. Wittgenstein reagiu com igual rudeza e a melancólica verdade é que Pitchard morreu uma semana depois. Isaiah Berlim, um dos presentes, me disse: “Uma execução. Eu não haveria perdido nem por todos os mundos.”
Naquele outono, Wittgenstein desistiu de sua cátedra e foi viver longe na Irlanda. Concluiu Investigações Filosóficas, mas então caiu doente com o que se diagnosticou como um câncer incurável. Viveu os últimos meses na casa de seu dedicado médico, em Cambridge. Morreu em 29 de abril de 1951. Com a morte, pode-se começar o culto à filosofia dele, cuja personalidade logo passou de excêntrica a heróica. Todos os aspectos de sua vida e pensamento, desde então, tem sido minuciosamente examinados em livros, e os que o conhecerem, ou com ele encontraram, tiveram as memória saqueadas por ávidos acólitos. Os incontáveis livros e ensaios sobre ele geraram mais incenso do que luz, e mesmo a biografia de primeira classe escrita por Ray Monk tem cantos obscuros. Há, e sempre haverá, importantes lacunas em nosso conhecimento desse estranho gênio, e ávidos pesquisadores e admiradores estarão cavoucando os indícios, muitas vezes fragmentários e contestados, durante gerações futuras. Mas essa é a natureza do culto ao herói. Enquanto isso, a lembrança dele atrai jovens inteligentes para a arte da filosofia, e esse é o incenso prático que era doce às suas narinas, embora provocasse, no fim, a imperiosa advertência: “Desista de fazer filosofia.”

Um comentário:

Alphonse van Worden disse...

Muitíssimo interessante o [i]post[/i]... não sabia, por exemplo, que Wittgenstein chegara a inventar máquinas e dispositivos mecânicos!

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