quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Morte em Veneza

Se Morte em Veneza é de fato expressão do zeitgeist de sua época, Mário Vieira de Melo tem razão em dizer que o maior problema ético-filosófico da modernidade é o problema do esteticismo.

Gustav Aschbach, o glorioso escritor homossexual alemão que vai se passar férias em Veneza vive terrivelmente dividido entre a vida ascética e metódica de seu trabalho e a sedução da embriaguês estética.

É um homem dúbio, vacilante. Veneza é símbolo do sensualismo, da embriaguês estética. Está lá indeciso entre o bom senso de se retirar, fugindo dos miasmas corruptos da cidade aquática que não fazem bem a sua saúde frágil e o desejo de ficar e arriscar sua vida na contemplação estética de um adolescente polonês, em que via a encarnação do Belo.

Quase parte sem vontade, mas um pequeno infortúnio acaba por dar-lhe um pretexto para ficar como desejava, no fundo, o seu coração.

Fica e acaba contaminado pela epidemia de cólera indiana que as autoridades venezianas se esforçam por ocultar. Morre então, ao final, na praia contemplando o efebo por quem se apaixonou, um dia depois de um sonho terrível que lembra um festim macabro, uma visão de caos e turbilhão, uma espécie de carnaval sob a regência do “deus estranho” em que René Girard veria o símbolo do crise sacrificial.

Essa visão do caos e do turbilhão se assemelham muito aos delírios de Hary Haller, o Lobo da Estepe, personagem também consumida pelo conflito entre o ascetismo e o bom senso da vida burguesa, de um lado, e os desvarios esteticistas da vida artística, de outro. O Lobo da Estepe é obra de um escritor alemão que tal como Thomas Mann tinha no conflito entre o Princípio Ético e o Princípio Estético o principal motivo de sua obra literária.

Thomas Mann e Herman Hesse são dois escritores alemães profundamente envolvidos com o problema do esteticismo. Sendo eles dois dos principais intérpretes da cultura alemã de seu tempo, parecem confirmar a tese de Modris Eksteins de que, realmente, o esteticismo era o principal problema da cultura e da sociedade alemãs da primeira metade do século XX.

Muito significativamente, o prólogo de sua “Sagração da Primavera” descreve justamente uma cena em Veneza com um artista russo, Diaghilev, também homossexual e marcado pelo primado do Estético sobre o Ético. O prólogo faz menção expressa a Morte em Veneza. O romance de Mann também se passa na primavera.

A primavera é uma festa, mas a festa é o prenúncio de algo que vai acabar mal. O ardor esteticista da cultura alemã - esta é a tese de Eksteins - conduziu à devastação da Primeira Guerra, ao nazismo e à hecatombe da Segunda Guerra Mundial.

É uma linha muito tênue a que separa o furor estético da destruição. Isso é o que parece nos ensinar Morte em Veneza e a obra de Eksteins.

Um comentário:

João Filho disse...

Interessante. Quando terminei a leitura d'A sagração da primavera fiz a mesma ligação com a leitura que Mario Vieira de Mello faz do esteticismo. Abraços.

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