domingo, 30 de janeiro de 2011

OS DEMONIOS DE LOUNDUN

Tanta gente que torce o nariz para Huxley certamente não o leu com a devida atenção a ponto de perceberem a profundidade de sua obra.

Os Demonios de Loudun é a narrativa dos eventos de possessão demoníaca que se deram num convento de freiras de uma pequena cidade francesa no século XVI, com o conseqüente martírio do padre grande pecador, Urbain Grandier, um homem lascivo e cheio de vaidade, completamente mundano que, todavia, foi acusado do que não fez e torturado barbaramente até a morte e queimado vivo por se recusar a confessar um delito que não cometera: o de causar a possessão. Fez o diabo, enganou duas mulheres, engravidou uma e tentou forçá-la a abortar, mas, no fim, os seus últimos momentos foram de uma grandeza digna de um santo. Não nagou a verdade de sua consciência, ao contrário de Galileu e Bertold Brecht. Não o canonizaram, não é santo nem mártir, no entanto. É só um pecador martirizado, barbarizado e crucificado por dois padres exoscistas que, pouco depois, vieram a morrer num colapso nervoso.

Me apraz imenso este tipo de narrativa. Toma-se um fato histórico e se o narra com paixão e riqueza de detalhes, entremeando a narrativa com uma percuciente análise social e histórica das circunstâncias do evento e de profundas digressões filosóficas e teológicas.

O trecho mais memorável o transcrevo abaixo. É do fim do último capítulo, que narra a morte de um outro padre, um doentio exorcista que se auto-flagelava e vivia torturado pela idéia de que já estava condenado. Viveu anos de terríveis sofrimentos psíquicos e depois, logo após se curar, encontrou a paz:

No Apocalipse nos encontramos com que o Espírito de Deus faz menção de uma música de harpas e alaúdes que dão um som grandioso de trovejada. Tais revistam ser os caminhos do Senhor: fazer que um trovão retumbe com agradáveis sonoridades de alaúde e que uma sinfonia de alaúdes ressoe com os retumbos dos trovões. E por outra parte, quem poderá acreditar ou imaginar que existem correntes de paz que arrasam até os diques, que rompem os diques e que convertem em pedacinhos as barreiras do mar? Entretanto, isso é o que acontece, pois essa é a natureza de Deus: promover assaltos de paz e criar silêncios de amor... A paz de Deus é como um rio que primeiro se deslizava sobre as terras de uma comarca e que depois veio a verter em outra por haver-se quebrado os diques. Essa paz invasora dá ocasião a algumas coisas que não parecem próprias da natureza da paz, porque vêm como precipitadas, porque vêm com impetuosidade; mas isto é coisa que, como própria, pertence à paz de Deus. Somente a paz de Deus pode vir desse modo —quão mesmo a maré crescente— não para arrasar a terra, a não ser para encher o leito que para ela Deus preparou. Irrompe com furiosas aparências e se acompanha do rugido, embora o mar se ache em calma. Esse rugido é causado mais pela abundância das águas que por sua fúria, já que o movimento delas não se deve à tempestade, a não ser às águas mesmas em toda sua nativa calma quando não as move nem o sopro mais leve de vento. O mar na plenitude de sua maré deve visitar a terra e a beijar as praias que lhe servem de cinturão. E chega pleno de majestade e de magnificência. E assim acontece com a alma quando, depois de longo sofrimento, alcança a imensidão da paz que vem visitá-la sem que o mais leve sopro de vento forme em sua superfície a menor enrugação. É uma paz divina que traz consigo os tesouros de Deus e a total opulência de seu Reino divino. Esta paz tem seus precursores e seus arautos: os venturosos pássaros que anunciam sua chegada, os anjos que a precedem. Vem como ingrediente da outra vida, como um som de harmonia celestial e com tal celeridade que a alma fica como derrubada, não por opôr resistência ao favor divino, a não ser por causa de sua plenitude e abundância. É uma abundância que não exerce violência mais que contra os obstáculos que lhe saem ao passo em seu caminho de bênção; por isso, todos os animais que não são aprazíveis desaparecem fugindo à irrupção dessa paz. Com a paz chegam todos os tesouros prometidos a Jerusalém: cássia e âmbar e quantas coisas preciosas que são adornos de suas praias. Quando chega esta paz, chega com abundância, chega completa de bênções, chega com os mais preciosos tesouros da graça.

Em Marennes, mais de trinta anos antes, Surin tinha observado muitas vezes o tranqüilo e irresistível avanço da maré do Atlântico e agora, a lembrança daquela cotidiana maravilha era o recurso pelo qual uma alma como a sua se fazia, por fim, capaz de «vomitar-se ela mesma», usando de uma expressão não de todo inadequada. Tel qu'en Lui-méme enfin l'eternité le change chegara —sem dar-se conta disso— ao lugar mesmo onde tinha estado sempre; e quando na primavera de 1665 lhe surpreendeu a morte «não teve necessidade —segundo palavras de Jacob Boehme — de ir-se a nenhuma parte». Se é que ele já se achava ali."

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